Todó Mundo
És ou foste vítima de assédio e ainda não deste por ela
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Um sismo com epicentro em Hollywood tem despoletado muito falatório. Um sismo chamado assédio laboral. A propósito deste assunto tenho ouvido demasiadas... vamos chamar-lhes opiniões. Dentro dos discursos filosóficos proferidos estão frases como a seguinte: "Ai as pessoas vêm agora queixar-se que foram vítimas de assédio, e fazer-se de coitadinhas. Mas tiraram partido do assédio para subir mais rápido e na horizontal não é? As pessoas só são vítimas de assédio se quiserem. Virem as costas e venham-se embora. Já se sabe que o mundo é mesmo assim. Se não conseguem lidar com isso mudem de emprego/profissão/empresa.".
Ah, então afinal o acto de assediar é mito. Muito se aprende nesta toca bem esticadinha à beira-mar. Na visão destas pessoas o assédio deve ser uma troca verbal ou física de cariz sexual consentida por ambas as partes e da qual tiram igual vantagem. Então não é assédio, é uma relação romântica recíproca, desejada e não repelida. Se não é consentido mas consumado, passa a violação e é punível por lei como tal. Se a pessoa "vem embora" à primeira situação, também assédio não o é, porque o assédio requer repetição e sistematização, e uma vez que a pessoa não se deixou assediar, não tem direito ao pelouro de "vítima" do que quer que seja. Então o assédio não existe. Que mentes avançadas e de alto rendimento estas!
Claramente as pessoas que verbalizam este entendimento maculado do que é o assédio, tendem a estreitar o conceito de assédio ao caso específico do mundo do espectáculo e da sua precariedade contratual, e além de lacunas graves a nível moral e conhecimentos básicos da psicologia humana e de interacção social humana, têm lacunas graves no conhecimento vocabular. Há três conceitos distintos aqui misturados, dois dos quais têm de ser descartados de imediato das conversações sobre o assunto. Assédio sexual não é flirt (troca de piropos galanteadora e desejada), nem relação romântica entre colaboradores da mesma empresa. E assédio sexual não é violação sexual. Para além disso o assédio pode ser moral, não apenas com vertente sexual.
Vou então tentar preencher as lacunas atrás referidas com uma massa porreira que adquiri nos meus encontros com umas coisas que adivinho não serem a leitura predilecta da maior parte das pessoas. Porque seriam? São uma seca, eu sei. Não referem em nenhum ponto os e-mails do SLB, o agressivo/padre do Rui Vitória, nem as gémeas da Luciana, ou a "gravidez escondida" da Carolina, ou os bebés do Ronaldo, ou o casaco da Meghan Markle. Não tem mal, além de ler as secas, também gosto de algumas informações cor-de-rosa ;)
Para tentar iluminar este tema, que anda um pouco nublado na cabeça das pessoas, vou socorrer-me de:
- Dicionário,
- Decretos do Diário da República,
- Estudos e guias da CITE - Comissão para a igualdade no trabalho e no emprego,
- Código do trabalho da ACT - Autoridade para as condições do trabalho.
Lamento informar-vos de que provavelmente vão concluir que são ou já foram vítimas de assédio moral ou sexual. Já sei o que estão a pensar neste momento:
O quê? Eu nunca! É porque sim! Olha agora eu. Como assim? Alguma vez? Vai tudo à lapada! Eu não admito essas coisas. Comigo não se esticam. Comigo ninguém faz farinha.
1. O QUE É ASSÉDIO?
1.1. Dicionário Porto Editora
as.sé.di.oɐˈsɛdju
nome masculino
1. conjunto de operações que visam a conquista de uma posição inimiga; cerco, sítio
2. figurado perseguição insistente em geral com o objetivo de conseguir algo; importunação
assédio moral
pressão psicológica exercida sobre alguém com quem se tem uma relação de poder
assédio sexual
conjunto de atos ou comportamentos, por parte de alguém em posição privilegiada, que ameaçam sexualmente outra pessoa
(transcrição)
1.2. ACT - Código do trabalho
DIVISÃO II
Proibição de assédio
Artigo 29º
2 - Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
3 - Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito referido no número anterior.
(transcrição)
1.3. CITE - Guia Informativo
3. Exemplos de atos e comportamentos suscetíveis de serem
classificadas como assédio no trabalho:
3.1 Assédio moral
- Desvalorizar sistematicamente o trabalho de colegas ou subordinados hierárquicos;
- Promover o isolamento social de colegas de trabalho ou de subordinados;
- Ridicularizar, de forma direta ou indireta, uma característica física ou psicológica de colegas de trabalho ou de subordinados;
- Fazer recorrentes ameaças de despedimento;
- Estabelecer sistematicamente metas e objetivos impossíveis de atingir ou estabelecer prazos inexequíveis;
- Atribuir sistematicamente funções estranhas ou desadequadas à categoria profissional;
- Não atribuir sistematicamente quaisquer funções ao trabalhador/a – falta de ocupação efetiva;
- Apropriar-se sistematicamente de ideias, propostas, projetos e trabalhos de colegas ou de subordinados sem identificar o autor das mesmas;
- Desprezar, ignorar ou humilhar colegas ou trabalhadores/as, forçando o seu isolamento face a outros colegas e superiores hierárquicos;
- Sonegar sistematicamente informações necessárias ao desempenho das funções de outros colegas ou de subordinados ou relativas ao funcionamento das entidades empregadoras, públicas ou privadas, sendo no entanto o conteúdo dessas informações facultado aos demais trabalhadores e trabalhadoras;
- Divulgar sistematicamente rumores e comentários maliciosos ou críticas reiteradas sobre colegas de trabalho, subordinados ou superiores hierárquicos;
- Dar sistematicamente instruções de trabalho confusas e imprecisas;
- Pedir sistematicamente trabalhos urgentes sem necessidade;
- Fazer sistematicamente críticas em público a colegas de trabalho, a subordinados ou a outros superiores hierárquicos;
- Insinuar sistematicamente que o trabalhador ou trabalhadora ou colega de trabalho tem problemas mentais ou familiares;
- Transferir o/a trabalhador/a de sector com a clara intenção de promover o seu isolamento
- Falar sistematicamente aos gritos, de forma a intimidar as pessoas;
- Marcar o número de vezes e contar o tempo que o trabalhador/a demora na casa de banho;
- Fazer brincadeiras frequentes com conteúdo ofensivo referentes ao sexo, raça, opção sexual ou religiosa, deficiências físicas, problemas de saúde etc., de outros/as colegas ou subordinados/as;
- Comentar sistematicamente a vida pessoal de outrem;
- Criar sistematicamente situações objetivas de stresse, de molde a provocar no destinatário/a da conduta o seu descontrolo.
3.2 Assédio sexual
- Repetir sistematicamente observações sugestivas, piadas ou comentários sobre a aparência ou condição sexual;
- Enviar reiteradamente desenhos animados, desenhos, fotografias ou imagens de Internet, indesejados e de teor sexual;
- Realizar telefonemas, enviar cartas, sms ou e-mails indesejados, de caráter sexual;
- Promover o contacto físico intencional e não solicitado, ou excessivo ou provocar abordagens físicas desnecessárias;
- Enviar convites persistentes para participação em programas sociais ou lúdicos, quando a pessoa visada deixou claro que o convite é indesejado;
- Apresentar convites e pedidos de favores sexuais associados a promessa de obtenção de emprego ou melhoria das condições de trabalho, estabilidade no emprego ou na carreira profissional, podendo esta relação ser expressa e direta ou insinuada.
(transcrição)
Quem já viu o filme Horrible Bosses sabe que muitas vezes uma pessoa sente-se tão presa naquele ambiente de assédio que a única via para a liberdade parece ser mesmo contratar um Dean Motherfucking Jones.
2. CONSEQUÊNCIAS DO ASSÉDIO
2.1. Lei n.º 73/2017
Art. 29º: A prática de assédio é proibida, constitui uma contraordenação muito grave e confere à vítima o direito a indemnização. O denunciante e as testemunhas por si indicadas não podem ser sancionados disciplinarmente.
Art. 283º: A responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais resultantes da prática de assédio é do empregador.
Art. 331º: Presume-se abusivo o despedimento ou outra sanção aplicada alegadamente para punir uma infração, quando tenha lugar até um ano após a denúncia ou outra forma de exercício de direitos relativos a igualdade, não discriminação e assédio.
Art. 394º: Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador: Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, incluindo a prática de assédio denunciada ao serviço com competência inspetiva na área laboral, praticada pelo empregador ou seu representante.
3. INTERROMPER O ASSÉDIO
3.1. Prevenção
A prevenção de assédio a título individual é impossível. Tentamos sempre ser o melhor e mais completo profissional possível, para que o nosso leque de opções seja grande e nunca estejamos em posição de dependência de ninguém. Nunca sabemos que idiota vamos apanhar pela frente. No entanto, há infelizmente uma grande parte da população que não tem outra opção e que de facto se torna dependente no seio laboral contra a sua vontade.
Ou porque o mercado da área profissional que adora é muito limitado para a elevada procura e não pode ser negado o direito a exercer a profissão idealizada só porque "já se sabe que o mundo é assim" (exemplo de Hollywood). Se o mundo é assim, está na altura de deixar de o ser.
Ou porque não se tem meios financeiros para valorização curricular e a vulnerabilidade social sobressai.
Ou porque se tem encargos financeiros e dependentes familiares e uma situação de contrato de trabalho precária e instável.
Como também assim o entendem, diversos organismos políticos como as Nações Unidas e a Comissão Europeia têm este tema como extremamente sério e na ordem do dia, e defendem que a prevenção tem de partir obrigatoriamente de mecanismos institucionais com o holofote da responsabilidade sobre os empregadores. Portugal tem vindo a juntar-se a esta luta recentemente, pelo que aconselho a leitura deste estudo por parte da CITE, onde encontrarão vários dados estatísticos, contextualização e rumo das medidas de luta contra o assédio laboral. Deste documento destaco o seguinte excerto:
"O facto de na maioria das empresas, instituições e organizações nacionais os temas do assédio serem praticamente invisíveis, e de não haver mobilização para o seu combate, ajuda obviamente a que estas práticas sejam entendidas como questões individuais ou de personalidade e não como fenómenos sociais presentes em todas as latitudes nos locais de trabalho.
Os resultados deste estudo revelam também que, na maior parte das vezes, as pessoas não sabem em que local (entidade) ou a quem (agente profissional) pedir informações e/ou não sabem a quem podem dirigir a sua queixa dentro da organização, sua entidade empregadora.
Pode também acontecer a pessoa tomar consciência de que é alvo de assédio quando já se encontra num estado de grande fragilidade emocional e de vulnerabilidade em relação a quem a assedia – podendo a vulnerabilidade agravar-se nas situações em que o ou a agente de assédio é também o seu ou a sua superior/a hierárquico/a e nas situações em que o vínculo contratual é precário.
Nos casos em que a pessoa alvo de assédio se sente com capacidade para encetar os procedimentos de inquérito, a sua fragilidade emocional ou psicológica pode fazer com que se torne mais reativa tornando mais difícil credibilizar o seu discurso."
3.2. Dicas para lidar com assédio laboral
1) Não se deixar afectar emocionalmente, e racionalizar as situações (obviamente difícil);
2) Anotar com data, hora, nome de testemunhas, pormenores, todas as situações de assédio vividas;
3) Procurar ajuda psicológica para evitar a vulnerabilidade mental inerente;
4) Procurar aconselhamento de um advogado, sindicato, entidade adequada;
5) Não se culpabilizar e não tentar mudar o assediador. É muito difícil mudar, principalmente quando o próprio não reconhece que tem um problema e falha de carácter e tende a ser parabenizado por ser como é. Cabe à entidade empregadora e/ou às autoridades competentes tomar medidas para desencorajar e punir o assédio.
3.3. Contactos
Sendo vítima ou testemunha de assédio laboral existem as seguintes opções:
Decerto que se identificam com uma série de situações descritas como assédio pelas autoridades competentes. Sim, é assédio pois é recorrente, sistemático, importuno, e não é desejado.
NÃO! NÃO ESTÁ TUDO BEM.
NÃO! NÃO SE TEM DE AGUENTAR.
NÃO! NÃO SE TEM DE DAR A VOLTA.
NÃO! NÃO É ACEITÁVEL.
NÃO! A CULPA NÃO É DOS ASSEDIADOS.
2 comentários
Muito bom, Inês! Parabéns!
ResponderEliminarObrigada Luisinha. Acho que muita gente teria vidas mais felizes se soubesse disto.
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