Porque é assim! Porque tem de ser!

As piores coisas que me podem dizer desde que comecei a compreender a linguagem são: 1. Porque sim 2. Porque é assim 3. Porque tem de se...

As piores coisas que me podem dizer desde que comecei a compreender a linguagem são:
1. Porque sim
2. Porque é assim
3. Porque tem de ser

Quanto do nosso dia, quanto do nosso ano, quanto da nossa vida é de facto vivido em liberdade?

Quem vive pelo menos 50% do tempo em momentos felizes, tranquilos, de puro bem-estar por dia? Quem adora pelo menos 50% do que faz no dia-a-dia?
[Têm de responder com reflexão sobre o assunto superior a 1h.]

É óbvio para todos que se queremos ter acesso a todo o tipo de serviços públicos e privados, e a todo o tipo de bens e produtos, convém que façamos a nossa parte por criar e manter esses serviços. Mas quando é que o objectivo de tornar a vida mais longa e confortável e prazeirosa, se transformou no prolongamento de uma vida árdua de deveres e de escravidão profissional, de "engolir sapos", de fretes, de pressão, de nos convencermos de 5 em 5 minutos a não desatar ao murro e pontapé a torto e a direito, e de jogos de escape a depressões?
Quem quer passar dos 80 anos a viver uma vida em que 90% do tempo foi perdido a fazer coisas que não nos trazem felicidade, não trazem felicidade a quem nos rodeia. Tempo que gastamos à feição do desenho actual da sociedade do local em que vivemos. Tempo que é de facto perdido!
Se espremermos as horas todas passadas em trabalho, com pessoas com quem não nos identificamos, em ambientes desgastantes e sugadores de tudo o que é bom, quantas dessas horas foram de facto horas produtivas? E mais importante, quanto dessa produção é que gerou realmente valor e acrescentou algo de bom à sociedade, e à qualidade dos produtos e serviços a que queremos precisaríamos de ter acesso no dia-a-dia?

44 anos de trabalho (no mínimo)
22 dias de férias por ano (no máximo)
8h de trabalho por dia (no mínimo)
1h de almoço (que muitas vezes não é de almoço)
1h30 no trânsito para chegar ao trabalho e voltar do trabalho, levar e ir buscar os miúdos
+ Ir ao ginásio, ir às compras, cozinhar, jantar, lavar roupa, estender roupa, passar roupa, arrumar a casa, limpar a casa, tomar banho, dar banho aos miúdos, dar de comer aos miúdos, deitar os miúdos, arrumar o caos dos miúdos, preparar as mochilas e as coisas dos miúdos, ou verificar que prepararam, ou ajudá-los a estudar para o teste, ...
Dormir

Repeat!

Ninguém nos aponta uma arma à cabeça para irmos trabalhar todos os dias, ou para tratarmos das roupas, e da limpeza da casa. Na maior parte dos casos, o emprego serve apenas para nos manter ocupados, e para traduzir-se num ordenado ao fim do mês que a sociedade nos incentiva sem dó nem piedade a gastar nesse mesmo mês, para que tenhamos que manter-nos a correr na rodinha que não sai do sítio.


E há aquelas pessoas que ainda dizem:
"Ama o que fazes, e não tens de trabalhar um dia na tua vida!"
"Adoro o meu trabalho, adoro o que faço, amo cada minuto!"

BULLSHIIIIIIT!

Primeiro ponto: parem de esfregar a vossa felicidade cocaíniana na fuça de quem não tem dinheiro para comprar coca.
Segundo ponto: 99% da população mundial não tem talento para merda nenhuma, nem sente "o chamamento" para porra nenhuma. NEM TEM DE TER.
É preciso parar de levar as pessoas que não têm nenhum objectivo de vida profissional a pensarem que há algo de errado com elas. Não há! Não precisam de entrar em depressão por não virem a ser o topo da vossa área profissional, não virem a ganhar um Nobel, não fazerem a mínima diferença na descoberta de algo fantástico e revolucionário. Se fizerem com que a vida de quem vos rodeia seja mais feliz, tranquila, e com mais momentos de conforto e risos, está óptimo.
Terceiro ponto: Se houvesse tanta gente feliz o tempo todo, já se sabia o segredo para a felicidade, e já todos tínhamos um chip implantado que libertava de x em x tempo uma dose do produto milagroso. E não estou a falar de Prozac!

É que a felicidade não está associada a coisas específicas. A felicidade é uma "ilusão" do nosso cérebro. Se a felicidade estivesse associada a eventos ou coisas, todos ficaríamos felizes com o mesmo tipo de acontecimentos. No entanto, para alguns a felicidade é a de passar um dia na praia, ou ir assistir a um jogo de futebol. Para outros a felicidade é dançar sem parar a noite toda. Ainda há aqueles para quem a felicidade é ser promovido no trabalho. E outros para os quais a felicidade é simplesmente que os deixem em paz e sossego. E os químicos que enchem o nosso cérebro e que nos dão a sensação de felicidade não estão em constante presença. O cérebro volta ao equílibrio anterior, daí que estejamos constantemente à procura de novas oportunidades para inundar-nos desses químicos fantásticos.

A questão é: Porque temos nós que viver vidas desenhadas para que alguns sintam a felicidade de 2 em 2h, se eu só a vou sentir 1 vez por ano? Porque é que nos dizem "A vida é assim, tens de adaptar-te a ela. As coisas são mesmo assim, e é assim que tem de ser. Tens de tomar o melhor partido possível de como as coisas são. Tu é que tens de mudar a maneira como encaras a coisa. Tens de convencer-te que se cumprires este caminho, vais ser feliz. Não vais mudar nada sozinho. Não podes sair deste caminho e arriscar-te por outro, porque senão vai correr tudo mal e vais ser super infeliz."

Porquê? O que é que nós sabemos sobre isto? Notícia de última hora para todas as pessoas que se acham donas da verdade sobre o sentido da vida, e que têm fortes convicções sobre a maneira "certa" de vivê-la:
Não passamos todos de ovelhinhas a ser pastadas, e a saber perfeitamente que o somos; mas a fingir que somos Deuses que têm todo o conhecimento na ponta dos dedos, e que decidimos sem qualquer influência externa todos os nossos passos, e que isto é tudo nosso.

A sociedade não era assim há 200 anos. Não era assim há 1.000 anos. E certamente não era assim há 20.000 anos. Nem a nossa sociedade é replicada em toda a área do globo terrestre, quanto mais... Sabiam que ainda há grupos de pessoas na Mongólia que vivem nómadas em tendas, e em torno das suas amiguinhas renas?

Já conhecem o Joel Santos? Tomem lá: http://joelsantos.net/


Quero ir viver para o Norte da Mongólia? A vontade às vezes é muita, mas acho que não.
Estamos melhor agora? Depende do significado de melhor.
Se melhor quer dizer que não acordo de manhã a pensar "Onde vou arranjar o que comer?", "Como vou fugir de doenças que me matem amanhã?", e "Como vou escapar de uma guerra, e de ser atravessada por uma espada, ou ser queimada viva, ou ser violada e roubada, ...?". Então a resposta é sim.
Se melhor quer dizer que a vida agora é mais longa e portanto posso aproveitá-la melhor, ser mais livre no meu dia, ter tempo para reflectir, tempo para gozar o que me rodeia, e quem me rodeia, e criar laços com os meus amigos e familiares, tempo e dinheiro para viajar, tempo para ler, "liberdade para gozar a liberdade" que conseguimos nos últimos minutos da história da humanidade? Então a resposta é não.
Somos mais felizes agora? Creio que não. O progresso é inevitável, mas não é aliado da felicidade. Que o digam os africanos, nativos americanos e aborígenes australianos, acerca das conquistas europeias, por exemplo. Vários estudos referem que a família, o casamento, e o sentido de comunidade influencia mais a nossa felicidade do que o dinheiro e a saúde. O progresso nos últimos 200 anos melhorou a larga escala os dois últimos, mas tem-se traduzido no colapso da família e da comunidade. Já para não mencionar que com o progresso as nossas expectativas para a vida disparam. E portanto o não cumprimento dessas expectativas resulta numa frustração gigante, que não existe quando se está muito satisfeitinho com o que se tem.
Poderemos vir a ser mais felizes ou a ter um maior bem-estar geral? Espero que sim.

A única constante na história é que nada é constante. Estamos sempre em mudança, em busca de algo que torne a maioria da população mais feliz e mais saudável. Porque temos de obedecer à mão fria e rígida que nos comanda desde o dia em que nascemos e nos empurra constantemente por um caminho que não queremos percorrer? A história mostra-nos que as coisas não têm de ser, definitivamente não são eternas, e temos todos liberdade para descobrir novos caminhos e novas maneiras.

A liberdade que nos é dada hoje é apenas um manto cativante que dissimula a prisão a um trabalho que nos ocupa a vida toda. Uma liberdade que nos controla, uma liberdade que nos influencia diariamente sem nos darmos conta para a aquisição constante de produtos e serviços que nos esgotam a conta bancária, nos confinam a uma vida de trabalho sem sentido, que soterram as nossas vontades e os nosso ímpetos, que transformam as nossas semanas e os nossos anos em círculos que se repetem e repetem e repetem, e são sempre iguais, e sempre iguais, e sempre iguais...

Mas então o que queres, perguntam-me vós?
Sei lá eu! Como bem explica o Yuval Noah Harari, sou apenas o resultado de milhares de anos desde a revolução cognitiva: um Deus insatisfeito e irresponsável que não sabe o que quer.


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