Bailarices
Onzartes
Vou mas é começar a construir a arca!
08:46:00
Tenho andado sem tempo para escrever. Entre obras, ensaios de ballet, curso de fotografia, festas de anos e encontros de amigos/família, o tempo que sobra é quase inexistente e está reservado para o J.
No entanto o bailado aproxima-se, a concentração de ballet nos meus dias está ao rubro, e tem invadido quase todos os meus pensamentos e sonhos. Gosto realmente de ballet, tenho orgulho em poder dizer que vivi a maior parte da minha vida no mundo o ballet (apesar da pausa de 10 anos), e não percebo como o ballet em Portugal é tão despopularizado e tão incompreendido como arte. E desporto também. Deve haver poucas actividades mais exigentes físicamente e minuciosas que o ballet. A beleza artística e a dificuldade de execução são proporcionais e astronómicas, diga-se de passagem, no entanto o sucesso entre as massas é reduzidíiiiiiiiissimo. Porquê?
Acho que sei porquê! O mesmo de sempre, e o mesmo que se aplica em qualquer outra área onde é necessária a empatia do público para atingir o sucesso e pedestal da carreira: TER UMA HISTÓRIA DRAMATÉRRIMA QUE VENDA REVISTAS/JORNAIS/AUDIÊNCIAS!
Ora veja-se o exemplo da Misty Copeland. A Misty é uma jovem rapariga que à partida teria três grandes motivos para não ter qualquer futuro no ballet e que ao mesmo tempo são os três grandes motivos que a levaram ao expoente máximo da carreira de um bailarino e a ter um sucesso desmedido na media, com convites para tudo o que é programa, anúncios de televisão, etc etc etc. Esse expoente máximo é ser bailarina principal de uma companhia de ballet, neste caso a American Ballet Theatre que está no top 3 das companhias dos EUA.
1) Vem de uma família humilde, com seis irmãos e uma mãe que se casou e divorciou quatro vezes (com companheiros diferentes, acho que convém referir... Nossa! Nem comento.) e que entretanto teve inúmeros namorados. Fartou-se de mudar de casa, e viveu inclusivamente com a família em dois quartos de um motel Inn whatever.
Cá está algo que vende nas revistas: Todos adoram ler sobre a vida desgraçadinha que uma celebridade aguentou e ultrapassou até chegar ao topo. Faz parecer que foi coisa fácil e que qualquer um tem o que é preciso para lá chegar. OU NÃO! Todos gostam de pensar: ah eu também podia ser se quisesse. Mas nem todos trabalham ou fazem o que é preciso para serem o que querem. Ou então simplesmente não querem nada, e por isso é que não vale o trabalho.
2) Iniciou a prática de ballet apenas aos treze anos. Acho que posso dizer que, se não 100%, 99% das bailarinas das companhias de bailado gigantes iniciaram a prática de ballet entre os três e os cinco anos. Mostra que a preseverança está lá. Mais uma vez cria a empatia com os jovens e adolescentes, a grande classe consumidora do mundo "civilizado" (não interpretem mal). Os adolescentes e as modas criadas para/por eles são o que faz circular o dinheiro. Os pais há 30 anos que não compram um bilhete nem saem de casa para ir assistir um concerto, mas às cinco da manhã dois dias antes da abertura para venda, já estão à porta da bilheteira com a termos do café e o saco-cama, para reservar bilhete para o menino que quer ir ver a "Argentina Fogueada" (aka Violetta), a "Badalhoca Linguaruda" (aka Miley Cyrus), ou o "Drogadito" (aka Justin Bieber). Aaaaaaai mãe! O mundo está perdido. Porque é que os pais fazem estas coisas pelos filhos? Eu também pedi muitas coisas aos meus pais. Nem dormir fora de casa, com os tios ou primos, quanto mais...
3) Não se esqueçam do que estávamos a falar. Misty Copeland! É afro-americana e tem um corpo não típico para o ballet, com ombros largos e músculos proeminentes. São raras as bailarinas não esqueléticas (sem ofensa) que chegaram a bailarinas principais; são raros os afro-americanos que chegaram a bailarinos principais; são então nulas as bailarinas "musculadas" e afro-americanas que atingiram a classe dos primeiros bailarinos de uma companhia de ballet do topo mundial. Atrevo-me a dizer que a Misty só chegou a Prima Ballerina por causa de todo a bolha criada à sua volta pelos media. Normalmente os bailarinos mostram o seu valor técnico e só quando atingem o top se vasculha as suas vidas. E uma coisa não se cruza nunca com a outra. Como no caso do Baryshnikov fugido da Guerra Fria com história à James Bond, espiões e tal na Guerra Fria. A Mistyzinha já é uma celebridade há muitos anos, e desde cedo teve direitos privilegiados nos media graças à sua história extremamente vendável. No entanto, também despoletou muita inveja, ódio, e guerra no mundo do ballet, uma grande divisão de opiniões e posturas. Por um lado alimentou ainda mais toda a personagem que os media já tinham vindo a trabalhar, por outro fê-la mais forte e com mais garra para continuar a trabalhar e contribuir para uma mudança radical na mentalidade conservadora associada ao ballet. Trabalhou que nem uma louca, perseverança deve ser o seu nome do meio. e hoje é uma fantástica bailarina de 33 anos que ainda precisa de um pouquinho mais de primor para atingir a perfeição técnica do ballet, mas que uma vez que já conseguiu o que queria (ser Prima Balerina) decidiu começar a dedicar-se a outras coisas como aventurar-se pela Broadway, programas televisivos, etc. Ou seja, chegou a Primeira Bailarina sem o rigor técnico de quem trabalhou desde os três anos de idade, e depois em vez de aproveitar os últimos anos de carreira para atingir o pináculo da perfeição, achou: Naaah, já tá, agora vou fazer outras coisas que me apetece. Já provei o meu ponto, já agitei as águas, já abri caminho, tá feito!
Não quero tirar louvor ao trabalho, disciplina, capacidade artística da Misty, mas apesar de todo o esforço e obstáculos que teve de ultrapassar, porque a sua execução há-de ter mais valor e ser mais reconhecida do que a de alguém que trabalhou a vida toda, teve uma família estável, e apresenta uma técnica surreal de tão perfeita, e uma capacidade artística de levar qualquer um à pele de galinha e lágrimas?
Serei a única que quando vê um atleta/actor/bailarino/cantor não quer saber do seu passado familiar e das suas vidas conturbadas de quem anda com quem, e quem foi apanhado onde, e quem é filho de quem, e quem traiu quem, e quem dormiu na rua ou num colchão; mas sim da técnica e arte que me arrepia, me embrulha o estômago, me dá nós no cérebro, me faz lembrar daquele momento para toda a vida?
Nenhum artista irá criar empatia comigo pela sua vida pessoal. A empatia comigo é criada em cima do palco, nos phones, no cenário de um filme, no campo de jogo. Não são o Dalai Lama nem o Madiba! Qualquer dia estão aí à venda biografias da malta toda dos reality shows e vai ser o primeiro livro a ter a sorte de habitar 90% das casas dos portugueses e a realmente ser lido.
Se calhar é melhor não dar ideias, senão o Ministério da Educação vai achar que está aí a solução para ensinar os putos a ler na escola com vontade, e os exercícios dos miúdos na primária vão ser: A Cátia Andreia deu dois estalos à Mónica Irene na segunda-feira, três estalos ao Inácio André na terça-feira e chamou vinte nomes à Liliana Catarina na quinta-feira. Quantos insultos e agressões somou a Cátia Andreia ao fim de uma semana? [Queria dar exemplos mais agressivos mas deve haver crianças a ler isto!]
Ai a minha vida! Vou mas é começar a construir a arca.
É pena o mundo estar a destruir-me a arte. A trocar os artistas por histórias baratas (que nem sei se serão tão pouco integralmente verdadeiras). É preciso corajosos neste mundo. Tudo de bom está a esfumar-se no ar. É frustrante tentar segurar fumaça!
We're all mad here!
1 comentários
Subscrevo ao teu ponto de vista. Não percebo toda esta fanfarra à volta da Misty. Aysha Ash e a Ashley Murphy foram outras bailarinas negras, com um potencial enorme, o corpo muito mais adaptado ao ballet, mas que passaram completamente despercebidas. Até que se bandearam para a Alvin Haley dance theatre. Já para não falar da Raven Wilkinson que foi bailarina da American Ballet Theatre durante os conturbados anos da segregação dos EUA. Todas elas fizeram por amor a dança e não ao mediatismo.
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